Quando o rapper moçambicano Y-Not “decidiu ser normal”, o resultado foi um álbum com uma qualidade acima da média que comporta sons tremendos, profundos e por vezes complexos. “Eu Decidi ser normal” é o terceiro trabalho discográfico deste artista. Apresenta 16 temas que reclamam o seu espaço na lista dos melhores álbuns de Hip Hop lançados em 2014 ao nível nacional.
Depois de uma intro com uma sonoridade que nos remete ao rock, logo na primeira faixa temos a música que dá título ao álbum “Decidi Ser Normal”, na qual o artista afirma: Decidi ser um gajo medíocre como todos vocês/ Não quero cripta nem renome, só quero viver/ Sei quem matou Siba-Siba, Machel e Mabote/ Calei a boca vou comendo a minha parte. Esta decisão não tendo sido tomada por acaso, justifica-se como um sinal de resignção de um homem que deu vida por uma “causa colectiva” que é a cultura Hip Hop, mas no momento em que precisou de ajuda ninguém esteve por perto. Aliás, de forma revoltante, Yazalde Yazalde demonstra o desamparo a que esteve sujeito ao declarar:Enterrei meu pai numa capulana; não tinha direito pra o caixão; nenhum desses mother fuckers conseguiu estender-me a mão; [...]. O mesmo desamparo o acolheu quando o filho morreu nas suas mãos, ele sem nada poder fazer pois mesmo com receita não havia medicamento no hospital.
A traição da mulher com o vizinho também entra no conjunto de situações que levam o Y-Not, decepcionado, a tomar a decisão de “ser igual a todo mundo, sem nada de especial”.Ora o “ser normal” a que o artista se refere acaba por ser paradoxal por significar abandonar o seu próprio carácter para adoptar um comportamento que só é dominante por ser da “maioria”, mas não por o correcto. Estamos a falar de adultere o, corrupção, desleixo,…etc. Esta é uma música que nos induz a uma reflexão sobre o nosso comportamento colectivo e a forma como lidamos com o próximo. É também um convite para se escutar o álbum que tem uma qualidade temática muito acima da média.
Y-Not não termina sem lançar uma crítica sobre um outro “mal” que se tornou um vício de “todos”: as redes sociais. “Passso horas no laptop a fingir de trabalhar/ Viciado no facebook, essas pitas chatar” – um comportamento que adoptou depois que decidiu ser “iguala a todos e “sem nada de especial”.
A faixa“1000 formas de morrer” é sublimar. Neste tema os rappers “brincam com a morte” descrevendo as várias formas pelas quais se pode embarcar para a viagem sem volta. A escolha de “elenco” para está música não podia ter sido melhor. Estamos a falar de 2Head, Mesio, AM, Loya e Colt 45. Estes, cada um à sua meneira, conseguem entrar no espírito da música e trazer rimas interessantes sobre um tema até assombroso, tal como o próprio Yzalde deixa transparecer ao afirmar que niggers “ficam congelados” quando “falo da morte”.
The Rapper Legend, tal como se intitulaY-Not, descreve a efemeridade da vida em versos simples e directos: “Temos niggas com bué saúde que vão morrer ainda hoje/ outros a socumbirem como Mandela que vão passar 92”. Isso depois deste jogo de palavras:“Pra quem teve uma vida de merda/ Só peço uma vida condigna/ Há mil formas de morrer/ Eu penso como será a minha”.
A criatividade é um denominador comum em todos os temas, mas poucos se comparam ao estrondoso “Circulo de Carico”. Esta é uma música dolorosa e arrebatadora. Uma viagem profunda em torno da história de perseguição aos Testemunhas de Jeová protonizada pelo regime, primeiro colonial e depois da Frelimo após a independência. A narração feita ao detalhe [nomes e datas] peca por incluir no refrão os termos: aleluia, alelua… que as próprias Testemunhas não usam nas suas manifestações. Uma “falha” que no entanto está longe de tirar o mérito que a música alcança ao trazer em páginas sonoras um retrato de um passado inglório de intolerância à livre escolha, nesse caso de religiao, mas que também foi e continua a ser política.
Depois do Circulo de carico, alivia-nos o espírito “Vilumbe”, outra faixa igualmente arrasadora. A música é dedicada aos companheiros de batalha e de sonhos que tombaram nos sinuosos caminhos da vida. Os episódios de sofrimentos e morte dos “personagens” desta música fazem dela uma narração sentimental.
“Bazou um por um da sua family/ O mundo te virou as costas [...] As vezes morrer é melhor do que sofrer/ O que não faz sentido não vale a apena fazer/ Tentaste o suicidio mas Deus não deixou/ Te condenou a sofrer e a morrer aos poucos”, recorda na música o artista.
Para se recuperar o fôlego arrancado pelas duas faixas passadas, surge-nos a provocação “Top 5 cornos da África”. A lista é composta por José Eduardo dos Santos, Valdimiro José, Robert Mugabe, Bang, Maria da Luz [Guebuza]. Ou seja dos cinco, três são moçambicanos. Assim posto, dir-se-ia que amealhamos, como moçambicanos, as medalhas de ouro e prata. Mas para garantir o relaxamento total entra em cena o som “quando o azar nos bate a porta” com melodia que nos remete ao Jazz. Khronic, do grupo Almas Habitantes, é quem abre a música enquanto a rapper Iveth fica encarregue pelo refrão. A “Missa do Divórcio” é simplesmente fenomenal.
O álbum de Y-Not é de um elevado nível de produção. O diálogo entre as músicas é algo que não se deve ignorar. A faixa “Decidi ser normal” e “ Erro de fabrico” são exemplos evidentes disso. Na primeira o rapper afirma: Decidi ser um gajo de merda/ Já limpei a empregada/ A vizinha de lá da estrada e a irmã da minha dama. E na segunda, uma música em que ele pede perdão a namorada pelos vacilos, confessa: Nunca mais te vou trair/ e só isto qe tens que tens que ouvir/ Daquela vez com a empregada/ Eu caí numa cilada/ Ela se aproveitou sua descarrada [...] / Daquele vez do gonerreia/ Foi a vizinha [...]/ Daquela vez da irmã [...]. Este são apenas exemplos de algo que se encontra ao longo de algumas músicas e que tornam as histórias mais interessantes.
“Velório de Y-Not” fecha o álbum. A escolha não podia ter sido melhor. Nesta faixa Y-Not não “reppa” o que faz todo sentido afinal de conta fala-se do seu próprio velório. Este é sem dúvida um álbum que entra no livro de ouro do hip hop moçambicano.
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